D menos 128 - a sorte foi lançada
Comunico a meu chefe meu desejo de tirar um sabático de pelo menos 6 meses, idealmente um ano. Em princípio se fosse aceito eu embarcaria numa boa nessa, faria um teste da aposentadoria precoce. Meio sem entender (imagino a surpresa) ele me prometeu que ia verificar o que poderia ser feito. Não falei nada sobre IF, só falei de sabático mesmo, que precisava dar um tempo pra voltar revigorado. A sorte estava lançada.
Eu me senti leve e corajoso, parecia que tinha tirado um peso dos meus ombros.
D menos 122
Último dia nesse cliente onde o pessoal até era gente boa mas eu odiava ir lá porque a logística era péssima pra mim. Tinha que pegar a marginal Pinheiros todo dia, enfrentando um baita trânsito, ainda por cima com um viaduto sendo reformado. Esse sacrifício todo pra fazer um trabalho que poderia muito bem ser feito de forma remota. Porém tinha um manda-chuva lá que queria ver a nossa cara, pra ter certeza que a gente estava trabalhando. O lugar daria um belo estudo de sociologia. Vários ali já eram aposentados oficialmente mas continuavam trabalhando não sei porque. Dívidas ? Sustentar filhos adultos ? Netos ? Sei lá.
No fim do dia passei o status dos problemas pra analista responsável, que me agradeceu com gentileza o empenho naqueles dias. Era por volta de 18h. Fiquei respondendo mais alguns emails e ao sair só restavam alguns gatos pingados no escritório. Lentamente desci a ladeira olhando no celular a situação da minha carteira, pensando que enfim era a última vez que faria aquele trajeto. Peguei meu carro e fui embora ouvindo podcasts pelas próximas 2 horas no trânsito.
D menos 118
Eu e meu chefe tivemos uma longa e aprofundada conversa onde eu já apresentei concretamente meu plano de morar no exterior por um tempo. Deixei claro que sairia da empresa caso não fosse possível me conceder esse sabático. Deu pra perceber o bicho atordoado do outro lado da linha.
Expliquei que a culpa do meu stress não era totalmente da empresa, mas uns 80% sim. Quase 30 anos de trabalho, nunca havia ficado desempregado, tendo sobrevivido a todas as crises e planos econômicos que se abateram sobre o país desde os anos 90. Plano Collor - eu estava lá. Plano Itamar. Plano Real. Crise da Rússia, do México, Bolha Pontocom, Subprime... passei por todos. Enfim, expliquei que tinha que dar um tempo antes que começasse burn-out, depressão e afins.
D menos 30
Por motivos diversos eu não poderia manter meu emprego durante o sabático. Era necessário pedir demissão. Ao receber essa informação fiquei meio bolado. Planejei tudo mas na hora H sempre bate aquele frio na barriga. Ao final de uma reunião peguei uma folha de papel e fui pro café escrever minha carta de demissão. Dali a pouco aparece a gerente do projeto ao telefone, eu disfarço e volto pra sala. Daí 5 minutos vou a outro café, escrevo a mão a carta de demissão, tiro uma foto com o celular e mando pro RH.
À noite quase não consigo dormir. Não acredito no que estou fazendo e digo a mim mesmo que é o plano a ser seguido, sem questionar. A hora de questionar já havia passado.
D menos 13 - adeus, Marginal
Mais uma vez a logística era péssima - enfrentar a maldita marginal Pinheiros, uma das vias mais congestionadas da cidade. Foram mais 2 horas de trânsito numa sexta-feira à tarde, ao som de vários podcasts. Porém esta seria a última vez. Nos dias seguintes fiz uma combinação de trabalho remoto e Uber, que é bem menos estressante porque eu aproveitava a viagem pra ler.
D menos 6
Fui fazer meu exame demissional. Foi rápido e bem superficial. Não sei se num exame desses pegam as doenças modernas - depressão, síndrome do pânico, burn-out, etc.
Mais um prego no caixão. O papel que a médica me deu parecia pesar uma tonelada.
D menos 2
Último dia fisicamente neste projeto. Tudo atrasado. Nunca sequer ouvi falar de um projeto que tenha saído no prazo. Prazos impossíveis é o padrão, não tem jeito, tanto que nos meus últimos projetos eu nem dava bola pra datas, nem sabia dizer qual era o prazo porque eu já sabia que ia atrasar.
Muita coisa pra fazer, incluindo passar as buchas pro meu sucessor. Todos me cobram como eu se fosse estar ali pra sempre. Eu assisto à tudo incrédulo. A ficha deles não havia caído. Faço o já tradicional rodízio entre reuniões pouco produtivas, café ruim e home-broker.
Às 18h me despeço de todos e desejo-lhes boa sorte no decorrer dos trabalhos. Ao cair da noite embarco no Uber pra nunca mais voltar ali.
O dia D
Chego às 9 da manhã, pego um café e começo o ritual que eu mentalmente chamo de "armar acampamento": retirar laptop da mochila, fonte, mouse velho com uma parte colada com fita crepe pra não cair, e o fone de ouvido pra fazer as últimas conferências. Montar tudo pela última vez. Por longos anos quis muito ter uma mesa, com uma foto da família e frases motivacionais. Um lugar fixo pra enfrentar as agruras do trabalho. Não deu.
Dia de resolver as últimas burocracias, devolver as coisas e almoçar pela última vez com os colegas. Até alguns dias antes nem sabia direito se ia fazer uma despedida, depois pensei direito e resolvi escrever pelo menos um email. Se não seria muita falta de consideração. Como não fiquei fazendo propaganda, tinha muita gente que nem sabia que eu estava saindo. Acabei indo almoçar com uma galera e foi bem legal.
Na volta respondi alguns emails e juntei minhas tralhas pra devolver. Passei no RH e entreguei minha carta de demissão escrita um mês antes, junto com o exame demissional. Entreguei meu crachá e fui acompanhado por um funcionário até a saída do prédio.
Assim terminava minha história como empregado bem remunerado de uma grande multinacional.
Virei vagabundo !